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Bíblia Sagrada. Imagem: Criada com IA sob supervisão do autor. |
A Bíblia é uma vasta e intrincada coleção de narrativas, leis, poesias e ensinamentos que moldaram civilizações e guiaram a fé de bilhões. Dentro dela, os Evangelhos se destacam como os relatos centrais da vida e dos ensinamentos de Jesus Cristo. Vamos mergulhar no primeiro deles, o Evangelho de Mateus, para desvendar suas profundidades.
1. O Que significa a palavra "Evangelho"?
Para entender o livro de Mateus, é essencial compreendermos o significado da palavra "evangelho".
Qual a origem e o sentido original da palavra "evangelho"?
A palavra "evangelho" tem sua raiz principal no grego antigo, mas o conceito de "boas notícias" também era familiar nas culturas da época.
- No Grego: εὐαγγέλιον (Euangelion)
- Literalmente, significa "boa notícia" ou "boa mensagem". É a combinação de eu- (bom/bem) e angelia (mensagem/notícia).
- No Hebraico: Basar (verbo) e Mevasser (substantivo)
- O verbo בָּשַׂר (basar) significa "trazer notícias" ou "anunciar", frequentemente boas notícias.
- O termo מְבַשֵּׂר (mevasser) designa aquele que "traz boas notícias", como a vitória em uma batalha ou a mensagem de salvação divina. Há também o termo aramaico כָּרוֹז (karoz), usado em Daniel, que se refere a um arauto real proclamando um decreto.
Em que contextos essas "boas notícias" eram utilizadas antes do cristianismo?
A ideia de "boas notícias" não nasceu com a Bíblia, mas era parte do cotidiano e da política da antiguidade:
- No Mundo Grego e Romano:
- O euangelion era frequentemente usado para anúncios oficiais e imperiais de grande importância. Imagine a notícia do nascimento de um herdeiro real, uma vitória decisiva em batalha que trazia paz, ou a ascensão de um novo imperador que prometia uma era de prosperidade.
- Prova Material: A Inscrição de Priene (9 a.C.) é um exemplo vívido. Este decreto celebra o nascimento de César Augusto, o primeiro imperador romano, declarando que o dia de seu nascimento "foi o início das boas novas (euangelia) para o mundo por causa dele". Isso mostra como o termo era usado para proclamar eventos que prometiam uma nova ordem e bem-estar para a sociedade.
- No Contexto Judaico (Antigo Testamento):
- As "boas novas" eram frequentemente associadas a vitórias de Israel ou, profeticamente, a anúncios de salvação e libertação divina por meio dos profetas (como em Isaías, que fala de quem anuncia a "boa nova de salvação" para Sião).
Como "evangelho" passou a se referir aos livros sobre Jesus?
Inicialmente, "evangelho" se referia à mensagem pregada por Jesus e sobre Ele – a suprema "boa notícia" da salvação e do Reino de Deus. Com o tempo, essa pregação oral foi registrada, e os relatos escritos da vida, ensinamentos, morte e ressurreição de Jesus passaram a ser chamados de "Evangelhos", pois continham essa "Boa Notícia" para a humanidade.
2. O Arauto: O Proclamador da Boa Nova
Associado à "boa notícia" estava o seu mensageiro, o arauto.
Quem era o arauto e qual sua função?
O arauto (grego: κήρυξ - kēryx; hebraico: כָּרוֹז - karoz) era muito mais que um entregador de mensagens. Ele era o representante oficial e a própria voz de uma autoridade (um rei, um imperador, ou até mesmo um deus).
- Sua principal função era proclamar publicamente e com autoridade mensagens de grande peso – decretos reais, anúncios de guerra ou paz, resultados de batalhas, ou o início de eventos importantes.
- A mensagem do arauto era inquestionável, pois vinha da mais alta instância de poder. Ele não interpretava ou alterava a mensagem; ele a tornava conhecida e oficial. Sua presença era imponente, e sua voz, treinada para alcançar grandes multidões, exigia atenção.
3. Mergulhando no Evangelho de Mateus: O Messias de Israel
Agora que compreendemos o pano de fundo do termo "evangelho" e a figura do arauto, podemos nos aprofundar no primeiro livro do Novo Testamento.
Quem era Mateus, o autor do Evangelho?
A tradição cristã atribui a autoria a Mateus, o publicano, também conhecido como Levi.
- Publicano (Cobrador de Impostos): Mateus era um judeu que trabalhava para o Império Romano, uma profissão que o tornava desprezado e marginalizado por seus compatriotas, vistos como traidores e pecadores.
- Apóstolo de Jesus: Surpreendentemente, Jesus o chamou para segui-Lo (Mateus 9:9), fazendo dele um de seus doze apóstolos e testemunha ocular de seu ministério. Essa escolha sublinha a mensagem de inclusão de Jesus para todos, independentemente de seu passado.
- Significado dos Nomes:
- Levi (hebraico): "ligado", "unido".
- Mateus (hebraico Mattityahu): "Dom de Deus" ou "Presente de Deus". Esse nome reflete sua nova identidade e propósito após seu chamado por Cristo.
- Vida Pós-Evangélica (Tradição): Embora os evangelhos canônicos não detalhem sua vida após a ascensão de Jesus, a tradição eclesiástica aponta que Mateus pregou em lugares como Etiópia, Pérsia e Macedônia, e a maioria dos relatos indica que ele sofreu martírio por sua fé.
Qual a mensagem principal do Evangelho de Mateus?
A mensagem central e o ensinamento mais marcante que podemos extrair do Evangelho de Mateus é que Jesus de Nazaré é o Messias esperado, o cumprimento definitivo das promessas de Deus a Israel, e o Rei que estabelece o Reino dos Céus, convidando todas as pessoas a viverem uma nova justiça que transcende a lei e abraça a misericórdia e o discipulado ativo.
Qual o contexto, estilo e público do Evangelho de Mateus?
- Contexto Histórico: Provavelmente escrito entre 80 e 90 d.C., após a destruição do Templo de Jerusalém em 70 d.C. Reflete as tensões e a separação crescente entre o judaísmo rabínico e a comunidade cristã primitiva.
- Estilo e Estrutura: É conhecido por sua organização didática, dividido em cinco grandes discursos de Jesus (como o Sermão da Montanha), intercalados por narrativas. Mateus frequentemente usa a frase "para que se cumprisse o que foi dito pelo Senhor por meio do profeta" para mostrar a conexão de Jesus com as profecias do Antigo Testamento.
- Público-Alvo: Primariamente uma audiência de judeus cristãos, que valorizavam as Escrituras Hebraicas e a Lei, mas com uma clara abertura para a inclusão dos gentios no plano de salvação de Deus.
Como Mateus retrata a pessoa humana de Jesus?
O Evangelho de Mateus nos apresenta um perfil de Jesus que é ao mesmo tempo plenamente humano e divinamente messiânico:
- O Messias Enraizado na História: Sua genealogia o conecta diretamente a Abraão e Davi, afirmando sua legitimidade como "Filho de Davi", o Messias prometido.
- O Mestre e Legislador: Apresentado como o "Novo Moisés", Jesus ensina com autoridade, aprofundando a Lei no Sermão da Montanha e exigindo uma justiça que vai além da mera observância exterior.
- Compassivo e Inclusivo: Demonstra profunda misericórdia pelos doentes, marginalizados e pecadores (como o próprio Mateus), sublinhando a universalidade de sua mensagem.
- Conflituoso e Profético: Não hesita em confrontar a hipocrisia das autoridades religiosas, atuando como um profeta destemido que denuncia a injustiça.
- Vulnerável e Sofredor: Sua humanidade é vivida intensamente na angústia do Getsêmani, na traição, no abandono e na crucificação, culminando em seu sofrimento e morte.
Este é apenas um estudo introdutório sobre o Evangelho de Mateus. Continuaremos na próxima semana.
Glossário
- Antigo Testamento: Primeira parte da Bíblia cristã, que narra a história do povo de Israel antes de Jesus.
- Apóstolo: Um dos doze discípulos principais de Jesus, enviado para pregar o evangelho.
- Aramaico: Língua semítica falada por Jesus e pelos judeus na Palestina no século I d.C.
- Arauto (Kēryx): Mensageiro oficial que proclamava publicamente mensagens de autoridade.
- Canônico/Canônicos: Livros aceitos como parte da escritura sagrada (da Bíblia).
- Cristo (Christos): Termo grego que significa "Ungido", equivalente ao hebraico "Messias".
- Eclesiologia: Estudo da doutrina da Igreja, sua natureza, estrutura e missão.
- Escatologia: Estudo das "últimas coisas": eventos do fim dos tempos, segunda vinda de Cristo, juízo final.
- Evangelho (Euangelion): "Boa notícia"; termo usado para a mensagem de Jesus e para os livros que a narram.
- Fariseus: Grupo religioso judaico influente no tempo de Jesus, conhecido por sua estrita observância da Lei e das tradições orais.
- Gentios: Termo usado pelos judeus para se referir aos não-judeus.
- Hipótese das Duas Fontes: Teoria acadêmica que propõe que Mateus e Lucas usaram Marcos e uma fonte de ditos (Q) como base.
- Judaísmo Rabínico: Forma de judaísmo que se desenvolveu após a destruição do Templo em 70 d.C., focado no estudo e interpretação da Torá oral e escrita.
- Lei (Torá): A Lei de Moisés, os primeiros cinco livros do Antigo Testamento (Pentateuco), que contêm os mandamentos e ensinamentos divinos.
- Messias (Mashiach): Termo hebraico que significa "Ungido", o esperado libertador e rei de Israel.
- Parousia: Termo grego para a "segunda vinda" ou "retorno" de Jesus Cristo.
- Publicano: Cobrador de impostos judeu que trabalhava para o Império Romano, geralmente malvisto por seus compatriotas.
- Reino dos Céus: Expressão usada por Mateus para se referir ao Reino de Deus, o domínio de Deus que se manifesta na vida de Jesus e na comunidade de seus seguidores.
- Sinóticos: Mateus, Marcos e Lucas, chamados assim por sua perspectiva "sinótica" (ver juntos) devido às suas semelhanças narrativas e de conteúdo.
- Fonte Q: Fonte hipotética de ditos de Jesus, que Mateus e Lucas teriam usado, mas que não se encontra em Marcos.
Projeto, pesquisa, revisão e edição: Sávio Freitas da Silva